sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Braz Cubas resiste

Braz Cubas resiste
Fiz o curso primário no Grupo Escolar Braz Cubas, alí na avenida Pinheiro Machado, quase na esquina da Evaristo da Veiga. Era uma escola pequenina, mesmo para a época, talvez uma das últimas escolas estaduais primárias em Santos, quando os grupos escolares municipais já se sobressaiam, como o majestoso Olavo Bilac, logo adiante, na esquina com a Carvalho de Mendonça.

Um prédio minúsculo, quase um bangalô, três salas, apenas, ligadas por um corredor externo, depois a diretoria e o gabinete dentário conjugado (um luxo único, “doação do deputado Gustavo Martini”, como dizia uma inscrição, já não lembro se no vidro opaco da porta vai-e-vem ou se numa plaquinha no batente). Ao lado, mais baixo, ainda, um galpãozinho aberto nos lados e sua continuação fechada, uma pequena biblioteca, uma secretaria, os sanitários.

Ultrapassado o portão de entrada, o terreno quase nu em frente, mas onde imperava um belo abacateiro, grandão para nós pequeninos , junto ao muro da casa da esquina com a Evaristo da Veiga. Nesse pátio formávamos as filas de entrada, quando não chovia. Alí cantavamos os hinos, nos feriados pátrios, e outras musiquinhas no dia-a-dia – “o galinho, Lalá...” -, corríamos e brincávamos.

As professoras e diretora eram senhoras socialmente consideradas, respeitadas... algumas vezes mesmo temidas. E as substitutas, todas mocinhas, lindas, queríamos que a “catedrática” faltasse para que nos lecionassem. Lá imperavam, também, mais que as diretoras e as professoras e o abacateiro, o “seu” Nicomedes, a D. Jandira.

Fui aluno do G.E.B.C. de 1951 a 1954, com um pequeno interregno de meses em que frequentei o Matteo Bei, em São Vicente. Mas isso é outra história. Foram quatro anos fantásticos, cheios de magia e eventos inesquecíveis, que passei usando a camisa branca com o monograma da escolinha no bolso. Isso nos valia o apelido de “baratas cascudas”, pelas letras “BC” entrelaçadas.

Lá, uma das experiências mais gratificantes do ser humano, só inferior à experiência dos filhos e netos, aprender a ler, revelar sem intermediação o que está nos livros, nas revistas, nas legendas. A “descoberta” da biblioteca do Sesi, na rua João Caetano, junta a um mercadinho daquela instituição me fez pensar, quando terminei o primário, que tinha lido todos os livros alí existentes!

No Braz Cubas assisti a uma apresentação “ao vivo” pela primeira vez, de um músico “a ser”, um colega que, acho, estava um ano na minha frente. Sete de setembro, festa na escola, o pátio cheio de pais, no corredorzinho elevado o Nilson Zago, com um violão talvez maior que ele, solou o “Abismo de Rosas”. Aplaudimos entusiasmados, foi mais um dos momentos mágicos daqueles anos, inesquecível!

Naqueles anos tivemos também, não sei se era uma ocorrência normal que as mudanças climáticas, urbanização e desmatamentos alteraram depois, uma revoada de passarinhos coloridos, dizam ser “periquitos australianos”, que passavam por aqui quando migravam, fugindo do frio. E se amontoavam, arrulhando, batendo asas, invadindo as salas pelas janelas. Eram milhares, ficavam pelas árvores dos quintais e do canal 1, nos telhados da escola e da vizinhança por 3 ou 4 dias, depois iam embora para retornar apenas no ano seguinte. Nesses dias as aulas ficavam muito agitadas, corríamos atrás dos pássaros dentro das salas, descabelávamos às mestras. Eu imaginava quão cansados estavam, tendo atravessado o oceano desde a Austrália

Quando se aproximava um outro 7 de setembro, a D. Dulce Espinhel, minha professora do 4º ano, me preparava para dizer uns versos cívicos nas festividades na escola. Ocorreu, então, o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Luto nacional, se cancelou a última chance de me tornar uma personalidade escolar. Foi o encerramento de uma época agitada e de grandes mudanças na história do Brasil, prenúncio de mais mudanças e avanços e retrocessos e novos avanços, mas isso já assunto para outro dia e outro local. Também já se aproximava o encerramento de minha história na escolinha.

No ano seguinte fui para o ginásio, o tempo passou, cresci, casei, tive filhos. Também para o Braz Cubas as coisas mudaram, algum tempo depois o estado construiu um prédio novo, em outro local, passou a ser escola estadual de primeiro e segundo graus, até o ensino médio, enfim.

Melhor que tenha sido assim, Grupo Escolar Braz Cubas só houve aquele, pequenino, bucólico, acolhedor.

Como ele, também passei por novas etapas, corri mundo, fui para aqui e para ali, fiquei mais velho, mais velho, mais velho... é incrível, nunca consegui ficar mais novo, mais novo...! Ia e vinha, enquanto isso a cidade mudava, não sei se para melhor.

O Hotel Internacional, de madeira, frente à Ilha Urubuqueçaba, foi demolido, construíram “aqueles prédios”, derrubaram, também, o Palace Hotel e construiram a aberração conhecida como “Universo Palace”. Derrubaram o Parque Balneário. O Estado, pela Sabesp, acabou com a praia do José Menino. Acabaram também os cinemas de bairros, acabou o carnaval, a D. Dorotéa. Acabaram os cines Atlântico, Gonzaga, Caiçara, Iporanga, Indaiá.

O Justo, com o Projeto Aglurb, acabou com os passeios e com as ruas do centro e, afinal acabou com o centro. O Beto, com a ciclovia, acabou com os jardins da orla, com os ingazeiros da ilha da avenida Ana Costa... e com centenas de outras árvores nas vias públicas e outros logradouros.

O Mendes acabou com o pátio da Fepasa e com o bom gosto na arquitetura da cidade. Acabou, também com outras áreas que poderiam ser destinadas a fazer respirar a uma cidade já exageradamente sufocada. E com o sossego dos que moram perto de seu heliponto.

Enfim, muitas coisas mudaram, mas, cada vez que voltava e passava pela Pinheiro Machado via, invicto, o prediozinho de meu grupo escolar. Às vezes mais bem cuidado, outros vezes derrubadinho, uma vez escola particular, depois canteiro de construtora e sei mais que outras abjeções e horrores sofreu o lugar.

A cada retorno, venho com o coração apertado, imaginando que outra arbitrariedade imobiliária terá se instalado no terreninho. E suspiro aliviado ao ver que, por sabe-se lá que mistérios esconsos, por que desígnios obscuros, nenhum desses “beneméritos” empresários conseguiu lançar seu poder sobre a área e destruir meu grupo escolar. Talvez ele acabe conservado alí para sempre, talvez a providência tenha lançado um cisco no olho dos “construtores, eles não vêem, passam por lá como se não existisse. Espero que o esqueçam...

Hoje não resisti, finalmente, passando por lá meus olhos marejaram. Dilapidado, faltando partes, abandonado, aparentemente emparedado. Mas, no conjunto, está todo lá, todos os lugares e rincões onde minha memória passeia e encontra abrigo... é certo que o abacateiro vive apenas na lembrança.

E me veio uma convicção. A de que enquanto ele esteja por alí, enquanto o querido, fantasmagórico e quase ectoplasmático Grupo Escolar Braz Cubas, apesar das invenções e intervenções dos Carvalhinhos e Barbosinhas, do Justo, do Beto, do João Paulo, do Mendes, da Macuco, do Borenstein, da Camargo Correa, da Cyrella, da Viação Piracicabana, da Constram, da Latina e associados, Santos vive, Santos resistirá...

Albano Fonseca
Postado em 20 de fevereiro, 2009

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