sábado, 4 de julho de 2009

Litoral Paulista sedia Congresso Mundial da Paz nas Américas

A frase da Organização das Nações Unidas (ONU), representa a forma que a ABrasOFFA (Associação Brasileira dos Organizadores de Festivais de Folclore e Artes Populares) encontrou para seguir tal orientação de buscar com mais intensidade a preservação da paz no mundo através das mais variadas formas. A ONG realiza, do dia 10 ao dia 15 de agosto de 2009 na UNIP de Santos, o evento inédito CONGRESSO MUNDIAL DA PAZ NAS AMÉRICAS, onde participam autoridades e experts em Cultura da Paz e da Não-Violência e em Redes Educadoras, nacionais e internacionais, que discutirão ações, valores e compromissos para a diminuição da violência e apresentarão idéias e projetos que deram certo em seus países de origem com o único propósito de alcançar a paz.

A idéia de fazer o Congresso no Brasil surgiu quando o projeto foi apresentado na Coréia em 2004 pela ABrasOFFA e reforçado na Grécia em 2007.

Entre os organizadores, 60 jovens voluntários da Baixada Santista ajudarão durante todo o evento e estarão em contato com a cultura da paz. “Protagonismo juvenil é um dos pilares de nossos projetos. Em um evento como esse, nossa atitude não seria diferente”, explica a vice-presidente da ABrasOFFA e organizadora, professora Helena Lourenço.

Dentre os temas abordados, conteúdos que contribuem para a tolerância da Paz compõem a programação. O Professor Hugo Ifrán (Argentina), fará uma exposição sobre o tema ‘Cultura Inimaterial’; Já o professor Magnus Haavelsrud (Noruega) traz o tema ‘Construindo Culturas de Paz na Educação’; O projeto Cidades Educadoras, criado em Rosario (Argentina), que consiste em espaços educativos para a população sem excluir faixa etária ou classe social, é trazido pela argentina Alicia Cabezudo, diretora da Rede Latino-Americana de Cidades Educadoras. O município de Santos tem o título de ‘cidade educadora’, conferido pela AICE (Associação Internacional das Cidades Educadoras), com sede em Barcelona, e passa a integrar o grupo de 400 municípios de 34 países, sendo 16 brasileiros. A iniciativa foi lançada na Espanha, em 1990, durante o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras.

As inscrições para o Congresso são gratuitas e voltadas para profissionais, professores, estudantes e interessados e deverão ser feitas pelo telefone (13) 3222-5772 com a própria entidade. São esperadas mais de 5 mil pessoas para participar de um grande marco para a consolidação da cultura da paz e da não-violência.

Divulgação da cultura popular e ferramenta para a tolerância, serão outras atrações do evento: Espetáculos de grupos folclóricos brasileiros e estrangeiros, feira de artesanato de entidades locais e exposições fotográficas e reportagens mostrarão como é a vida de outros povos. Paralelamente, jornalistas do mundo todo se encontrarão para, também, discutir formas de divulgar a paz.

A ABrasOFFA (Associação Brasileira dos Organizadores de Festivais de Folclore e Artes Populares), Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, fundada em 1992, com título OSCIP, é filiada e representante oficial do IOV (Organização Internacional de Artes Populares) e membro correspondente do CIOFF (Conselho Internacional dos Organizadores de Festivais de Folclore e Artes Tradicionais), com sede na França.

Mundo Tolerável

A ONU e a UNESCO vem ao longo dos anos orientando a todos os Povos do Mundo para que se unam em torno desta questão tão crucial: Preservar a Paz no mundo, por meio de manifestações culturais, eventos, seminários, simpósios, congressos, etc. e que é dever de todo o cidadão consciente e preocupado com o futuro das nações, trabalhar pela Paz.

É neste momento, conturbado pela violência urbana e pelas guerras, que temos de nos unir e encontrar soluções para minimizar as hostilidades, a violência nas escolas, no trânsito, nas comunidades, em países com falta de alimentos e com conflitos raciais e sociais.
A Arte e a Cultura Popular são bens vitais do patrimônio cultural de todos os povos do mundo. Mediante o fomento, proteção e conservação entre as tradições e inovações, estes bens deverão servir ao bem-estar de toda a humanidade, contribuindo para a aproximação dos povos e da Paz Mundial.

A Cultura popular é uma expressão de identidade cultural. Ela demonstra a felicidade dos homens e contribui de maneira essencial para a convivência dos homens em paz, segurança e harmonia, estabelece as bases de criatividade, responsabilidade social e amor ao próximo. O conhecimento da história e da cultura de outros povos, portanto contribui e reduz os conflitos, criando tolerância e Paz e é nisto que a ABrasOFFA vem trabalhando ao longo dos anos.

Serviço:
Congresso Mundial da Paz nas Américas
Data: 10 a 15 de agosto de 2009
Local: Universidade Paulista (UNIP) – Avenida Rangel Pestana, 147. Santos – São Paulo.
Mais informações: (13) 3222-5772.
www.abrasoffa.org.br

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Braz Cubas resiste

Braz Cubas resiste
Fiz o curso primário no Grupo Escolar Braz Cubas, alí na avenida Pinheiro Machado, quase na esquina da Evaristo da Veiga. Era uma escola pequenina, mesmo para a época, talvez uma das últimas escolas estaduais primárias em Santos, quando os grupos escolares municipais já se sobressaiam, como o majestoso Olavo Bilac, logo adiante, na esquina com a Carvalho de Mendonça.

Um prédio minúsculo, quase um bangalô, três salas, apenas, ligadas por um corredor externo, depois a diretoria e o gabinete dentário conjugado (um luxo único, “doação do deputado Gustavo Martini”, como dizia uma inscrição, já não lembro se no vidro opaco da porta vai-e-vem ou se numa plaquinha no batente). Ao lado, mais baixo, ainda, um galpãozinho aberto nos lados e sua continuação fechada, uma pequena biblioteca, uma secretaria, os sanitários.

Ultrapassado o portão de entrada, o terreno quase nu em frente, mas onde imperava um belo abacateiro, grandão para nós pequeninos , junto ao muro da casa da esquina com a Evaristo da Veiga. Nesse pátio formávamos as filas de entrada, quando não chovia. Alí cantavamos os hinos, nos feriados pátrios, e outras musiquinhas no dia-a-dia – “o galinho, Lalá...” -, corríamos e brincávamos.

As professoras e diretora eram senhoras socialmente consideradas, respeitadas... algumas vezes mesmo temidas. E as substitutas, todas mocinhas, lindas, queríamos que a “catedrática” faltasse para que nos lecionassem. Lá imperavam, também, mais que as diretoras e as professoras e o abacateiro, o “seu” Nicomedes, a D. Jandira.

Fui aluno do G.E.B.C. de 1951 a 1954, com um pequeno interregno de meses em que frequentei o Matteo Bei, em São Vicente. Mas isso é outra história. Foram quatro anos fantásticos, cheios de magia e eventos inesquecíveis, que passei usando a camisa branca com o monograma da escolinha no bolso. Isso nos valia o apelido de “baratas cascudas”, pelas letras “BC” entrelaçadas.

Lá, uma das experiências mais gratificantes do ser humano, só inferior à experiência dos filhos e netos, aprender a ler, revelar sem intermediação o que está nos livros, nas revistas, nas legendas. A “descoberta” da biblioteca do Sesi, na rua João Caetano, junta a um mercadinho daquela instituição me fez pensar, quando terminei o primário, que tinha lido todos os livros alí existentes!

No Braz Cubas assisti a uma apresentação “ao vivo” pela primeira vez, de um músico “a ser”, um colega que, acho, estava um ano na minha frente. Sete de setembro, festa na escola, o pátio cheio de pais, no corredorzinho elevado o Nilson Zago, com um violão talvez maior que ele, solou o “Abismo de Rosas”. Aplaudimos entusiasmados, foi mais um dos momentos mágicos daqueles anos, inesquecível!

Naqueles anos tivemos também, não sei se era uma ocorrência normal que as mudanças climáticas, urbanização e desmatamentos alteraram depois, uma revoada de passarinhos coloridos, dizam ser “periquitos australianos”, que passavam por aqui quando migravam, fugindo do frio. E se amontoavam, arrulhando, batendo asas, invadindo as salas pelas janelas. Eram milhares, ficavam pelas árvores dos quintais e do canal 1, nos telhados da escola e da vizinhança por 3 ou 4 dias, depois iam embora para retornar apenas no ano seguinte. Nesses dias as aulas ficavam muito agitadas, corríamos atrás dos pássaros dentro das salas, descabelávamos às mestras. Eu imaginava quão cansados estavam, tendo atravessado o oceano desde a Austrália

Quando se aproximava um outro 7 de setembro, a D. Dulce Espinhel, minha professora do 4º ano, me preparava para dizer uns versos cívicos nas festividades na escola. Ocorreu, então, o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Luto nacional, se cancelou a última chance de me tornar uma personalidade escolar. Foi o encerramento de uma época agitada e de grandes mudanças na história do Brasil, prenúncio de mais mudanças e avanços e retrocessos e novos avanços, mas isso já assunto para outro dia e outro local. Também já se aproximava o encerramento de minha história na escolinha.

No ano seguinte fui para o ginásio, o tempo passou, cresci, casei, tive filhos. Também para o Braz Cubas as coisas mudaram, algum tempo depois o estado construiu um prédio novo, em outro local, passou a ser escola estadual de primeiro e segundo graus, até o ensino médio, enfim.

Melhor que tenha sido assim, Grupo Escolar Braz Cubas só houve aquele, pequenino, bucólico, acolhedor.

Como ele, também passei por novas etapas, corri mundo, fui para aqui e para ali, fiquei mais velho, mais velho, mais velho... é incrível, nunca consegui ficar mais novo, mais novo...! Ia e vinha, enquanto isso a cidade mudava, não sei se para melhor.

O Hotel Internacional, de madeira, frente à Ilha Urubuqueçaba, foi demolido, construíram “aqueles prédios”, derrubaram, também, o Palace Hotel e construiram a aberração conhecida como “Universo Palace”. Derrubaram o Parque Balneário. O Estado, pela Sabesp, acabou com a praia do José Menino. Acabaram também os cinemas de bairros, acabou o carnaval, a D. Dorotéa. Acabaram os cines Atlântico, Gonzaga, Caiçara, Iporanga, Indaiá.

O Justo, com o Projeto Aglurb, acabou com os passeios e com as ruas do centro e, afinal acabou com o centro. O Beto, com a ciclovia, acabou com os jardins da orla, com os ingazeiros da ilha da avenida Ana Costa... e com centenas de outras árvores nas vias públicas e outros logradouros.

O Mendes acabou com o pátio da Fepasa e com o bom gosto na arquitetura da cidade. Acabou, também com outras áreas que poderiam ser destinadas a fazer respirar a uma cidade já exageradamente sufocada. E com o sossego dos que moram perto de seu heliponto.

Enfim, muitas coisas mudaram, mas, cada vez que voltava e passava pela Pinheiro Machado via, invicto, o prediozinho de meu grupo escolar. Às vezes mais bem cuidado, outros vezes derrubadinho, uma vez escola particular, depois canteiro de construtora e sei mais que outras abjeções e horrores sofreu o lugar.

A cada retorno, venho com o coração apertado, imaginando que outra arbitrariedade imobiliária terá se instalado no terreninho. E suspiro aliviado ao ver que, por sabe-se lá que mistérios esconsos, por que desígnios obscuros, nenhum desses “beneméritos” empresários conseguiu lançar seu poder sobre a área e destruir meu grupo escolar. Talvez ele acabe conservado alí para sempre, talvez a providência tenha lançado um cisco no olho dos “construtores, eles não vêem, passam por lá como se não existisse. Espero que o esqueçam...

Hoje não resisti, finalmente, passando por lá meus olhos marejaram. Dilapidado, faltando partes, abandonado, aparentemente emparedado. Mas, no conjunto, está todo lá, todos os lugares e rincões onde minha memória passeia e encontra abrigo... é certo que o abacateiro vive apenas na lembrança.

E me veio uma convicção. A de que enquanto ele esteja por alí, enquanto o querido, fantasmagórico e quase ectoplasmático Grupo Escolar Braz Cubas, apesar das invenções e intervenções dos Carvalhinhos e Barbosinhas, do Justo, do Beto, do João Paulo, do Mendes, da Macuco, do Borenstein, da Camargo Correa, da Cyrella, da Viação Piracicabana, da Constram, da Latina e associados, Santos vive, Santos resistirá...

Albano Fonseca
Postado em 20 de fevereiro, 2009

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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Algumas considerações sobre a exportação de música popular brasileira

Discursos Identitários em Torno da Música Popular Brasileira

Este trabalho tem sua origem em nossa dissertação de mestrado, quando estudamos como a questão identitária é articulada nos discursos sobre a música brasileira exportada a partir dos anos 2000, sendo, portanto, um estudo que tem como base os processos de mundialização. Para o presente trabalho, trazemos alguns dos pontos tratados nessa pesquisa.

Tratamos de três possibilidades identitárias, que, entendemos, são as mais articuladas na música brasileira exportada. São elas as identidades: nacional, mundial e restritas. Podemos para cada uma relacionar uma variante cultural. A identidade nacional vai se relacionar imediatamente com o nacional-popular, que, segundo Marco Napoplitano, se refere, no Brasil, àqueles tipos musicais formados entre os anos de 1920 e 1970 (Napolitano, 2007: 75) e que se ligam a uma idéia consagrada de brasilidade. A identidade mundial vai se traduzir no campo cultural naquilo que Renato Ortiz chamou de internacional-popular (Ortiz, 2001: 182-206). Com este termo pensamos nas manifestações que perdem sua territorialidade, que não se ligam diretamente a uma identidade em fronteiras, que perdem sua marca de origem e que geram sentido social a pessoas em todo mundo. Ao se reterritorializarem na vida cotidiana, porém, são assumidas de maneiras diferentes em cada lugar. Por fim, as identidades restritas se tornam, no campo cultural, naquilo que vamos chamar, coerentemente aos outros dois termos já consagrados, de cultura popular-restrita. Por este entendemos as manifestações culturais cujos discursos que o circundam se referem a uma imagem de territorialidade fixa, a um grupo determinado formado em torno de questões étnicas (com o qual vamos nos preocupar), mas também poderiam ser etárias, de gênero, de classes sociais, etc. [Quando olhamos os escritos sobre a música brasileira no exterior, no espaço da modernidade-mundo, notamos o acerto de nossa escolha analítica. Um exemplo é o livro Music in Brazil: Experiencing Music, Expressing Culture, do norte-americano John P. Murphy, que se propõe como um panorama da música brasileira atual. Este autor, pois, dividiu seu trabalho em três capítulos, cujos títulos são suficientes para corroborar nosso argumento: Music and National Identity (Música e Identidade Nacional), Music and Regional Identity (Música e Identidade Regional) e Musical Cosmopolitanism (Cosmopolitismo Musical) (Murphy, 2006).

Antes de entrarmos na análise, é importante notar que estas múltiplas possibilidades de discursos identitários surgem no momento em que a identidade nacional perde sua condição privilegiada na geração de sentidos sociais, condição esta que vigorou entre o fim do século XVIII e início do XX. A globalização da economia e da tecnologia, enviesada pelo sistema capitalista sempre em expansão, não mais se atém às fronteiras do Estado-nação. Busca rompê-las, sendo tal movimento responsável tanto pela entrada em jogo de uma identidade mundial (e sua variante cultural internacional-popular), quanto pelo ressurgimento (ressignificado ou criado nos termos de um simulacro) de identidades restritas que, no momento da fundação do Estado-nação, foram oprimidas. Enfim, se de um lado a globalização enfraquece a identidade nacional – por ser restrita demais – e espalha uma cultura mundializada, de outro permite que as culturas de identidades infra ou pré-nacionais possam gerar conformações simbólicas legitimadas. O importante, contudo, é entender como estas culturas ligadas às identidades se articulam. A música brasileira exportada é um campo privilegiado para tal compreensão.

Pensemos de imediato nos discursos do Ministério da Cultura brasileiro proferidos em razão de seu programa Copa da Cultura, ocorrido em 2006, que visou, em parceria com a instituição alemã Haus der Kulturen der Welt, a aproveitar a Copa do Mundo de futebol da Alemanha para divulgar a cultura brasileira naquele país a seus nativos e ao sem-número de turistas de outros países que fatalmente passariam por lá. Propunha-se:

"Um conceito aberto de cultura: No âmbito internacional, o Brasil há muito se tornou uma marca de enorme valor positivo. (...). Samba e futebol são os clichês da cultura brasileira. Samba e futebol são também formas através das quais a identidade da cultura brasileira e sua força integradora se mostram da maneira mais espetacular. Na realidade, porém, o Brasil é um continente de enorme diversidade cultural, com influências indígenas, africanas, européias, do oeste asiático e norte-americanas que não só se misturam, mas que também coexistem: a arte experimental contemporânea vive um momento de ruptura explosiva nos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que as formas rituais da tradição continuam existindo naturalmente, como parte da sociedade moderna". (Paschoal, Odenthal, 2006). (texto assinado conjuntamente pelos representantes brasileiro e alemão do programa)

Importa aqui notarmos que samba e futebol são assumidos como clichês fundamentais para a criação da identidade cultural brasileira. Descartando o futebol, que não é nosso interesse, o samba então – elemento da cultura nacional-popular – é assumido, ainda em 2006, como elemento fundador da identidade brasileira. Contudo, este elemento não mais se sustenta sozinho. O Brasil deve ser visto como “um continente de enorme diversidade cultural”, justificada por diversas influências de povos.

Notemos que não são mais apenas os índios, os negros e os europeus que formam nossa cultura – como víamos em discussões de intelectuais como Gilberto Freyre, que buscavam valorizar nossa mistura étnica na formação de um “povo” – mas os oeste-asiáticos e os norte-americanos são assumidos em nossa “diversidade cultural”. Novamente trazendo para nossos termos, a cultura popular-restrita (representada pela influência indígena) e a cultura internacional-popular (ligada discursivamente aos europeus e norte-americanos) aparecem em nossa conformação cultural. Por fim, também notemos que as culturas não apenas se misturam, mas coexistem. Esta noção de coexistência, que também está no fato propagado de que modernidade e tradição se encontram lado a lado no Brasil, é que ditará o mote do tratamento das identidades quando se relacionarem ao todo do Brasil: não é a síntese que tanto importa, mas sim a enumeração. Não mais somos uma cultura, mas sim todas as culturas.

Isto se nota pelo o que dizia na mesma oportunidade o então ministro Gilberto Gil. Ao ser perguntado por um jornal alemão sobre o que significa ser brasileiro, afirma que “ser brasileiro não significa ser algo. Significa ser muitas coisas. Em primeiro lugar, o que se tem de fazer, para se tornar brasileiro, é reconhecer a diferença como valor” (Frankfuter Allgemeine Zeitung, 2006: 31). Tratando dos clichês, Gil segue na mesma linha. “Eu não tenho nada contra clichês. Temos samba, praia e carnaval. Mas o que nós queremos mostrar também é a diversidade [Vielfalt] da cultura” (Handelblat, 2006: 6). Desta maneira, quando se pergunta, afinal, quais são as principais tendências no Brasil em termos de música, a resposta de Gil só pode ser extensa:

“A cena do Espírito Santo, por exemplo, é caracterizada pela fusão do congo com formas religiosas de expressão e celebração dos negros, dos índios e dos europeus, assim como o rock, o pop, o reggae e a música eletrônica. É o sincretismo musical que une a casaca com a guitarra, e o tamborim com o laptop, assim expressando ao mesmo tempo tradição e modernização. Eu poderia também falar do hiphop de São Paulo, do funk carioca do Rio de Janeiro, das canções populares do Pará, do reggae do Maranhão, da nova música de Minas Gerais, dos sons do Manguebeat de Pernambuco, da bossa eletrônica. Há muitos grupos de várias idades e de todas as partes do país fazendo música e ao mesmo tempo mantendo a tradição, incorporando novas inspirações, substituindo formatos e invocando associações inconcebíveis. Você tem de ouvir para entender” (Popkomm – English Issue, 20 – 22 /09/2006: p. 6).

A impressão que se tem é que esta resposta poderia se estender indefinidamente. Mas o que gostaríamos de retirar deste discurso é a idéia do sincretismo e a visão enumerativa. Gil aponta o sincretismo como a marca da cultura brasileira. Contudo, este sincretismo não resulta em uma síntese, em um termo novo, mas na necessidade de enumeração. Quando o samba se forma, por exemplo, ele se torna uma categoria musical apagando de seus discursos os estilos musicais que lhe deram origem, como o lundu, a marchinha, o maxixe, etc. O samba se torna uma categoria única. Já na atualidade, a mistura em música exige o discurso extensivo, hifenizado, que expresse a maior parte dos elementos que geram uma manifestação cultural. Isso se dá, justamente, pela impossibilidade de se ter uma identidade monopolizadora de sentido.

Com isso, o movimento que busca ampliar a significação identitária se volta ao mesmo tempo para desvalorizar a cultura nacional-popular e imbuir de força simbólica as culturas internacional-popular e popular-restrita. Isso se nota quando o músico e produtor mato-grossense Leandro Carvalho afirma que devemos “nos erguer dentre os demais como um grande país exportador de música e cultura, vencendo de uma vez por todas os estereótipos limitantes que nos aprisionam como o país do samba e do futebol” (Carvalho, 2006: 73); também quando um conceituado crítico de música brasileiro afirma em celebração que “O samba, nossa legítima matéria-prima, agora divide espaço com o rock, o funk e o eletrônico para gringo ver – e isso é muito bom” (Sanches, 2007: 58, 59).

Propomos olhar como as identidades se articulam em suas vertentes culturais a partir de um corpo analítico específico. Tomemos os projetos regionais de exportação de música, entre os quais nos interessamos pelos seguintes: 1) Music From Pernambuco (MFP 1 e 2) 1).* Região: Pernambuco; língua do encarte: inglês; 2) Music From Northeast (MFN). Região: Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba, Sergipe e Alagoas; língua do encarte: inglês; 3) Ceará Original Soundtrack (COS). Região: Ceará; língua do encarte: inglês/português; 4) Music from the Capital of Brasil (MFCB): Região: Distrito Federal; língua: inglês/português.

Não temos espaço aqui para discutir cada projeto. Contudo, tomados em si, é relevante notar como tratam suas produções em relação à identidade. O projeto de Brasília basicamente se volta à descrição do Brasil. Brasília seria o “centro geográfico” do Brasil e “a síntese da diversidade cultural brasileira” (MFCB). Já o projeto do Ceará valoriza o estado como o local de origem de “um grande número de talentos que contribuem diretamente para a história da música brasileira, uma das mais brilhantes do mundo”. E, com isso, “traçando uma linha entre as raízes e as novas raízes e as novas faces da música”; o projeto reúne os “destaques da produção contemporânea deste ensolarado estado brasileiro, que possui uma cultura rica e diversificada (...)” (COS). Já os projetos de Pernambuco vêem na cultura nacional-popular uma restrição à promoção de sua música. Assim, este projeto se inspira “no fato de que a maioria dos agentes, bookers e promotores [estrangeiros] de música nunca visitaram Pernambuco e seu conhecimento sobre o Brasil é restrito ao Rio de Janeiro e Salvador” (MFP).

Há diferentes estratégias entre os projetos no lidar com a identidade. Se no projeto de Brasília não há valorização de qualquer aspecto restrito, mas sim de uma coincidência com o Brasil, o projeto pernambucano dispensa a cultura nacional-popular e a vê, na verdade, como um empecilho de sua entrada no mercado mundial. No meio do caminho, temos o projeto cearense que busca um empréstimo de legitimidade da identidade nacional para afirmar sua cultura popular-restrita. Assim, podemos notar uma escala de forças simbólicas das identidades aqui articuladas na inserção global de suas culturas. Se a identidade pernambucana é forte o suficiente para passar por cima da identidade nacional, as identidades cearense e calanga, ao contrário, precisam desta última para atuarem no mercado mundial de música. Em outras palavras, as identidades adquirem forças dispersas que são articuladas estrategicamente como valores. Este é o centro de nossa argumentação e a ele voltaremos.

Vejamos, agora, os discursos de promoção dos artistas destes projetos. Vamos, neste momento, escolher os projetos de Pernambuco (MFP e MFP2), do nordeste (MFN) e do Ceará (COS), pois em seus encartes há textos sobre cada artista presente. Notemos os discursos em referência à marcação de origem (espacial e temporal), aos elementos mágicos, religiosos ou tradicionais e à descrição de atividades laborais. Lembramos que nos encartes, após os descritivos de cada artista ou grupo, há o contato para shows e a notícia se o disco está disponível para ser licenciado no exterior. Portanto, todos os artistas ou grupos devem ser vistos como atores que buscam inserção no mercado internacional de música. De modo metodológico, separamos dois grupos de textos.

O texto sobre o Maracatu Nação Estrela Brilhante fala de sua data de fundação, em 1910, “por antigos escravos”, e do local em que estão localizados, “Alto José do Pinho, uma comunidade conhecida por sua efervescência cultural”. Ainda, fala-se de seu apego às “tradições dos ritos africanos com todas as suas divindades”. Por fim, aponta que “seus instrumentos musicais são ainda feitos como eram usados no período da escravidão” (MFP). Já os Tambores da Oxum é uma banda “que canta o mágico de uma cultura antiga que foi capaz de desafiar o tempo” (MFP). O Reisado de Carnaíbas é descrito como “um grupo de cultura popular tradicional que vive na vila da Carnaíbas, que é situada no interior, perto da cidade de Arcoverde, Pernambuco. [A cultura] da vila de Carnaíbas (...) é dinamicamente ligada às atividades da comunidade rural” (MFP2). Por fim, Dona Maria “de todas as vozes que passam pela paisagem sonora do Cariri, é o hino das margens dos córregos das lavadeiras e as mulheres puramente devotadas”. Ela toca rabeca, que é “um tipo de viola rústica ancestral” (COS).

De lado discursivamente oposto do grupo de textos acima, temos os seguintes. Sobre o DJ Dolores & Aparelhagem diz-se que este artista “tem feito remixes para grandes nomes da música brasileira”, sendo que seu novo projeto é “o mais avançado [the latest] da música eletrônica brasileira” (MFP). Já Lula Queiroga, lançou em 2004 seu último disco, “mostrando o mais avançado [the latest] da sonoridade pop” (MFP2). O trabalho de Karine Alexandrino é “o mais contemporâneo produzido pela cantora brasileira”, com “vários elementos do mundo da música pop soando; do pop francês dos anos 60, indo pelo movimento tropicalista brasileiro, procurando o romantismo do brega do nordeste do Brasil aos Westerns italianos. Karine é a prova viva de que é possível misturar referências abrangendo do Punk ao Jazz com sofisticação” (MFN). Por fim, Montage “é uma banda revolucionária que adiciona um novo sabor à cena eletrônica brasileira” (COS).

Propomos ler estes discursos da seguinte maneira. Enquanto no primeiro grupo vemos as origens espaciais bem marcadas, as origens temporais em registros remotos, os elementos mágicos, religiosos presentes e as atividades laborais fora do campo musical destacadas, no segundo grupo temos o oposto. Os artistas ou grupos são apresentados como multi-localizados ou deslocalizados, seus últimos trabalhos datam em tempo recente, os usos tecnológicos em suas músicas são valorizados e suas atividades profissionais são ligadas somente à música. A conseqüência: para o primeiro grupo – ligado evidentemente à identidade restrita – o aspecto identitário é fixado; para o segundo grupo – ligado prioritariamente à identidade mundial, o aspecto identitário é uma opção.

A partir dos discursos aqui apresentados, está claro que estamos em um cenário no qual a identidade nacional tem suas barreiras culturais forçadas para expansão por uma cultura internacional-popular e por culturas popular-restritas. Ainda, as identidades são mobilizadas conforme a valor simbólico que possuem, ou seja, a força em gerar interesses no mercado global de música. Por fim, que os atores neste cenário têm suas manifestações culturais discursadas a partir de registros identitários, sendo que alguns são destinados a se fixarem em registros específicos e a outros é dada a mobilidade entre diferentes registros. É a partir disso que nos dedicamos às problematizações.

Marshall Berman aponta que:

“Para que as pessoas sobrevivam na sociedade moderna, qualquer que seja sua classe, suas personalidades necessitam assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade. Homens e mulheres modernos devem aprender a aspirar à mudança: não apenas estar aptos à mudança em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente em busca das mudanças, procurá-las de maneira ativa, levando-as adiante. Precisam aprender [...] a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovação, a olhar sempre na direção de futuros desenvolvimentos em suas condições de vida e em suas relações com outros seres humanos” (Ridenti, 2000: 304).

Zygmunt Bauman vai no mesmo sentido ao afirmar que “Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, ‘estar fixo’ – ser ‘identificado’ de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman, 2005: 35).

Se concordamos com estes dois autores (e com diversos outros que não pudemos aqui citar), a mobilidade se torna uma imposição da boa vida moderna. Isso se nota também pelo fato de que a música de todos os artistas ou grupos citados se encontre em um espaço móvel, desatrelado de suas raízes. Contudo, a própria mobilidade gera uma fixidez. O Maracatu Nação Estrela Brilhante passa a ser aquilo que está registrado; o Reisado Encanto das Carnaíbas passa todo ele a ser aquela canção do disco. Assim, a mobilidade gerada pelo fato do bem cultural poder circular para além das fronteiras comunitárias leva a uma fixação. E esta fixação se dá também no nível simbólico, quando o discurso em torno do bem cultural é apropriado pela indústria cultural. Esta, na verdade, inverte a ordem das coisas. As culturas tradicionais, que têm essencialmente uma manifestação cultural móvel, pois se renova a cada acontecimento (por uma chuva, por um casamento, por um funeral, etc), são fixadas em suportes desta indústria (um disco, mas poderia ser um MP3). Com isso, a própria identidade é fixada e os atores que nela se movimentavam, agora devem a ela se atrelar. E esta fixação é último movimento que o mercado global de música permite aos criadores de cultura popular-restrita. A partir deste momento, eles serão suas próprias identidades, usadas como sua caracterização no mercado da música. Já aos outros, aqueles a que são permitidos os usos de outras identidades, tal fixação (o registro fonográfico) é o primeiro passo para uma mobilidade intensa, na qual a adequação identitária ocorrerá de múltiplas maneiras. Há, portanto, condições de mobilidade que, propomos, são dadas por dois fatores: o valor que a identidade imediata possui na modernidade-mundo e o acúmulo de capitais (em termos de Bourdieu) que possuem estes atores para se tornarem fixos ou móveis. Tratemos disso.

Quando Manthia Diawara diz que “os povos [na África] não entendem (...) a necessidade de se preservar as ‘culturas autênticas africanas’, (...) [uma] obsessão dos especialistas europeus” (Diawara, 2004: 107), na verdade está apontando para uma realidade que se vê às claras a partir da relação da indústria cultural com as identidades em suas vertentes culturais. É justamente aqui que se forma o ciclo seletivo de adequação às identidades possíveis na globalização. As culturas ligadas às identidades adquirem valor e a necessidade da indústria cultural em variar um produto é que vai estipular este valor. Neste sentido, manter as “culturas autênticas” em funcionamento é, na verdade, é uma necessidade em prover para o mercado variações simbólicas, seguindo a regra de uma “diferenciação gerenciada”. Mantendo-se uma base comum (esta ligada à cultura internacional-popular, pois aquela comum ao mundo todo, ou melhor, ao mercado consumidor global) as “culturas autênticas”, aquelas popular-restritas, assumem a função de apresentarem as novidades. Afinal, na modernidade-mundo, é preciso que todo produto contenha variações que permitam que as estratégias globais se mantenham em operação, renovando-se constantemente. Do contrário, pela lógica do consumo cada vez mais individualizado, a própria repetição condenaria ao fim qualquer expressão cultural que se expandisse globalmente, como a internacional-popular.

Está aí a necessidade de articulação entre as culturas nacional-popular, popular-restrita e internacional-popular. Enquanto a última não se sustenta sem a variação provida pelas outras, as outras não conseguem isoladamente atuarem em um mercado global. Isso porque, as identidades popular-restrita e nacional (as menos valorizadas, em geral de países não ocidentais) só conseguem espaço no mercado global ao se assumirem como a variação de símbolos comuns reconhecidos, aqueles gerados pela cultura internacional-popular. Neste sentido, as identidades que são mobilizadas, o são conforme os valores que adquirem neste mercado, sendo que o maior valor significa sempre uma maior condição de mobilidade.

São, então, necessárias estratégias de valorização de identidade, que ocorrem pelo o que chamamos de empréstimo de legitimidade. É o caso de se trazer para um corpo simbólico de uma identidade outro corpo que seja mais legitimado no mercado. Isso ocorre, por exemplo, quando propagandas de sandálias ou bebidas marcadamente brasileiras mostram alemães ou americanos como seus consumidores. Neste caso, a identidade brasileira recebe de empréstimo uma legitimidade a partir de grupos de pessoas que carregam em si valores identitários superiores no mercado global de símbolos. Contudo, tal empréstimo também depende do valor prévio que uma identidade já detém neste mercado, sendo um processo contínuo de ganhos e perdas.

Os atores – no nosso caso os músicos, mas também as empresas que trabalham com música, como gravadoras, empresas de venda de shows – circulam em conformidade com as identidades a que se atrelam. Aqueles atores que se formam em torno de um discurso identitário, cuja base simbólica é territorializada, datada, ligada a elementos não modernos – que são os especialmente ligados às manifestações culturais popular-restritas –, deverão neste se fixar. Já aqueles que, do contrário, se formam em discursos identitários de base simbólica desterritorializada e, portanto, ligados aos processos racionais e tecnológicos, baseados em elementos da cultura internacional-popular, terão sua área de atuação aberta às possibilidades de escolha. Isto porque se a tradição é discursada a partir de elementos rígidos – data, local de nascimento, instrumentos musicais, raízes ancestrais, etc – a modernidade é discursada a partir de elementos flexíveis, tendo a tecnologia como base privilegiada. Contudo, o mercado de música – e o cultural em geral – é feito ele mesmo desta flexibilidade. Exige a eterna adaptação de elementos em prol de uma visão de inovação constante, condicionada, é fato, a uma padronização (seria melhor pensar em diferenciação gerenciada). Oras, se os elementos discursados a partir da identidade restrita são justamente o oposto à inovação, os seus descartes são plenos, e aqueles criadores que a estes discursos se atrelam serão simultaneamente descartados. Mantém-se deles apenas a imagem que provém de suas culturas, de suas identidades, que poderão, então, ser assumidas pelos atores capazes de múltiplas identificações, mais adaptados aos ditames do mercado global. São estes os que chamamos de atores móveis.

Conforme o acúmulo de capital do criador cultural ele deverá se subsumir com mais ou menos fixidez a uma identidade em busca de se posicionar no mercado internacional de música. E, ainda, dependendo também deste capital, o criador poderá se relacionar a uma identidade mais fixa, ou seja, que preza pela perenidade e territorialidade e, portanto, menos valorizada, ou a uma mais valorizada por ser flexível, tendo como essência a própria mudança e a desterritorializacão. Ou seja, podemos pensar em dois tipos extremos de criadores. Um que, por falta de acúmulo de capital, necessita se fixar em uma identidade, sendo que sua imagem no mundo da música se torna esta própria identidade, impedindo-o de trocá-la. Ainda, por falta de capital este criador só pode buscar a identidade mais imediata, mais próxima a si e que, portanto, é territorializada. No outro extremo, temos o criador cujo capital lhe permite não se fixar a qualquer identidade, pois não o necessita para se inserir no mercado cultural, mas que, quando ou se o fizer, será de forma controlada, estratégica e temporária, enquanto tiver interesse para tanto. Assim, se do lado do primeiro criador temos todos os elementos da fixidez (a identidade é fixa e sua relação para com ela também o é), para o segundo temos todos os elementos da mobilidade. Em um tempo no qual a mobilidade se impõe como imperativo de sobrevivência é evidente que para o primeiro criador a vida no mercado cultural está fadada a não passar de um suspiro. Repetimos: apenas sua imagem se manterá viva, mas de si alienada, em termos marxistas, e apta a ser apropriada por outros criadores que poderão dela se aproveitar, mas nela não se fixarem.

Estamos, portanto, diante de um cenário de interesses homogêneos e oportunidades heterogêneas. O interesse de todos estes criadores é a inserção no mercado cultural, pois não há mais espaço fora dele, especialmente a partir dos desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos no mundo da música. A própria sobrevivência de um valor cultural passa a ser visto como possível apenas pelo mercado. Contudo, as possibilidades para a atuação são distribuídas desigualmente, dependendo da capacidade do criador em se relacionar de forma mais ou menos flexível com identidades mais ou menos valorizadas. Para tanto, diversos capitais estão em jogo. Alguns que se adquirem com o desenvolvimento da vida de cada um e outros que são adquiríveis por limites impostos à condição inerente a cada pessoa. Quanto ao primeiro grupo, no caso de música, poderíamos apontar: 1) Capital econômico: quanto mais dinheiro um criador tiver mais liberdade ele terá para atuar no mundo musical, podendo financiar seus discos, da maneira que quiser, fazer turnês, pelos países que quiser; 2) Capital cultural: se a cultura internacional-popular, por sua desterritorialização, é a que mais se beneficia em valor na mundialização, especialmente – e não apesar – a partir dos desenvolvimentos das novas mídias, o conhecimento de algumas técnicas são fundamentais. Entre elas, destacam-se os conhecimentos sobre o mundo digital e o domínio da língua da mundialização, o inglês. 3) Capital social: quanto mais produtores, gerentes de gravadoras, agentes de artistas, enfim, pessoas influentes no mundo da música, que trabalhem no mercado global, fizerem parte de seu relacionamento, mais facilitada estará a inserção do criador neste mercado.

Quanto aos capitais que não podem ser adquiridos se encontram. 1) Questões étnicas: nascer imediatamente relacionado a uma identidade privilegiada é uma vantagem neste mercado, sendo que esta apenas será acrescida em valor quando mais identidades fizerem parte da carreira deste criador. Do contrário, o que nasce relacionado a uma identidade desprivilegiada deverá empreender todos os seus esforços para amenizar suas marcas, como mudar o seu nome de origem para um em inglês. 2) Questões raciais: a cultura internacional-popular é dominada por criadores europeus e norte-americanos, como se percebe facilmente. Assim, estamos falando, basicamente, de povos brancos. Os povos negros também podem ser incluídos por sua forte presença nos Estados Unidos, mas fazemos o adendo de que não concordamos que em música não há racismo. A indústria cultural estabelecida inclui os negros no processo de criação e produção, mas os condiciona a espaços específicos, geralmente relacionados ao que consideram os espaços para a música negra. Assim, ainda hoje, o negro não possui, na mesma proporção dos brancos, condições de circulação identitária no mercado mundial de música. Agora, a alguns outros povos, o estigma é maior, o que leva a uma grande dificuldade de inserção neste mercado por suas identidades**. É por isso, por exemplo, que vemos tantos cantores de rock japoneses que mudam a cor do cabelo, buscam diminuir a base de lápis a curvatura dos olhos, etc, buscando parecerem mais ocidentais.

Em conclusão, podemos enfim pensar que a articulação entre as identidades mundial, nacional e restrita não se dá sem hierarquias. A identidade mundial, no mercado global, funciona como um padrão ao qual as outras identidades devem acertar seus relógios e funcionar como elementos de uma diferenciação gerenciada. Neste contexto, identidades são fixadas e pessoas a elas condicionadas, tornando, elas mesmas, meramente trabalhadores de segunda linha, cuja função é tornar o bem cultural desejado pela indústria em algo mais valorizado. A tecnologia, que então aparece ideologicamente como o espaço do livre acesso e da criatividade, na verdade é um modo de controle que garante a ordem das coisas e a concentração de poder em torno de poucos e que a poucos pode beneficiar. São esses poucos aqueles capazes de lidarem com este mercado, aqueles a que chamamos de atores móveis. Atores estes que não se sustentam sozinhos no mundo, mas que numa relação necessária, vêem sob si aqueles que se fixam em torno de suas identidades.

Bibliografia
Livros:
Bauman, Zygmunt. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Carvalho, Leandro. (2006). “O Rodopio do Centro”, in: INSTITUTO ITAÚ CULTURAL, Rumos_Brasil: Pensamentos & Reflexões. São Paulo.
Diawara, Manthia. (2004). “Towards a Regional Imaginary in Africa”, in: JAMESON, Fredric, MIYOSHI, Masao (orgs). The Cultures of Globalization. Durham, London: Duke University Press.
Goffman, Erving. (1980). Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Murphy, John P. (2006). Music in Brazil: Experiencing Music, Expressing Culture. New York, Oxford: Oxford University Press.

Napolitano, Marco. (2007). A Síncope das Idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
Ortiz, Renato. (2001). A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense.
Ridenti, Marcelo. (2000). Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record.

Jornais e Revistas:

Sanches, Pedro Alexandre. 2007. “Made in Brazil”. Rolling Stone 5: 58-59.

“So schön dass es weh tut“ Frankfurter Allgemeine Zeitung 14/05/2006: 31.

„Von wegen bloss Samba“. Handelblat 13.14.15/01/2006: 6.

Popkomm – English Issue, 20 – 22 /09/2006: 6.

* Todas as informações e os textos citados foram retirados dos CDs promocionais que carregam o mesmo nome dos projetos, e que possuem como encarte um material descritivo do projeto. Isso vale para todos os projetos citados. Todos materiais analisados foram criados a partir de 2000. Ainda, é importante o fato de que todos sejam apoiados por órgãos governamentais (secretarias de cultura ou Sebrae regional)
** Pensamos aqui com Erving Goffmann em dois sentidos. Um, quando ele fala da possibilidade da correção de um estigma (p. 19). Outro quando diz que ao estigma, “a visibilidade é, obviamente, um fator crucial” (p. 58). (Goffman, 1980).

Apresentado no 4º Encontro de Música e Mídia - USP - 2008 - Organização Heloísa Valente.


Michel Nicolau nasceu em 1978, é mestre em sociologia pela Unicamp e doutorando em sociologia pela mesma universidade. Formado em Direito pela PUC-SP, também cursou Letras-Alemão na USP. Fez diversas conferências sobre o tema música, globalização e identidade, das quais se destaca a proferida na Humboldt Universität, em Berlim, em 2007. Publicou em 2008 o livro “Concerto para Duas Vozes” com Fernando Lara. Também possui dois artigos aprovados para publicação, sendo um na revista ArtCultura, da UFU, e outro na Revista de Estudos de Sociologia da Unesp. A partir de dezembro de 2008 parte para o doutorado sanduíche na Humboldt Universität, dentro do departamento de Sociologia da Música. Email: michelnicolau@gmail.com

Postado em 04 de fevereiro, de 2009.

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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

UMA PROPOSTA PARA SANTOS

por Albano Fonseca

O grande desafio que enfrenta qualquer nova administração é o de estimular e apoiar a geração de empregos e da renda das famílias e de fazer crescer a arrecadação, de maneira a permitir a retomada do desenvolvimento social e econômico. Deverá servir-se de uma idéia-força, com imaginação, criatividade, habilidade e competência para identificar a um projeto que atenda a essas especificações. Deverá mobilizar a opinião pública para tê-la a favor da iniciativa.

O turismo é atividade econômica que responde com mais rapidez às iniciativas e estímulos que lhes sejam proporcionados. Há quase um consenso pela obviedade que aparenta. Desde há muito que se apresenta, na concepção de alguns, como promotora da “redenção” da cidade e da Região. As coisas não são, porém, tão fáceis assim.

Antes que se cair na mesma velha cantilena sobre o assunto, antes de se voltar às mesmas velhas e inócuas propostas, aos projetos megalômanos e descolados da realidade objetiva, à discussão inócua e dispersiva, baseada em impressões eivadas de desconhecimento, de desinformação e até mesmo na repetição de argumentos antiquados e negados pela realidade, é obrigatória a percepção de que não existem mais as condições que existiram anteriormente. Santos poderá ser, como já o foi, um grande centro receptivo se formos capazes de desmistificar o que a ignorância e a má-fé, provenientes em larga parte de fontes locais, têm alardeado.

É evidente que a cidade tem todas as condições necessárias para desenvolver em escala crescente e de alto retorno financeiro a economia turística, sem a necessidade de investimentos diretos de grande porte imediatamente. Desde que direcionada para o rumo correto. O Poder Público deverá ser o grande indutor.

Mas as condições objetivas mudaram, Santos perdeu sua condição de grande (e único) “resort” dos anos anteriores à abertura do acesso ao Litoral Norte, da expansão e melhoria do acesso ao Litoral Sul, do crescimento da classe média e das facilidades de viajar e estar, decorrentes do crescimento da economia nacional, das mudanças de hábitos de consumo e lazer, da perda de sua importância econômica relativa em um contexto privilegiado (o do comércio do café) e do surgimento de novos eixos econômicos e turísticos por todo o país. Para ficar em um único exemplo, o parque hoteleiro da cidade tem o mesmo porte ou talvez seja menor do que era no começo dos anos ’50 (e com menor índice de ocupação), quando sua população era de menos que a metade da atual. Assim, a cidade tem que se voltar para aquilo que surge, naturalmente, como sua vocação e explorar com eficiência a vantagem que lhe proporcionam suas condições e qualidades únicas. E o fará melhor trazendo para isso o apoio e a colaboração ativa do enorme contingente de pessoas de mais idade, muitas delas profissionais que ainda podem aportar idéias e dar parte de seu tempo em tarefas de planejamento, consultoria, pesquisa e organização.

Não se pode esquecer, também, que a quantidade de leitos disponíveis para novos turistas é pequena, pouco acima de dois mil em toda a Região, e que qualquer esforço de incremento de turistas deverá ser feita gradativamente, já que os investimentos requeridos para crescimento exponencial só serão atraídos depois de confirmado o crescimento seguro da demanda. De outra forma, a desordem que se possa estabelecer acabará por destruir totalmente a iniciativa.

Finalmente, e não menos importante, é necessário entender que se terá que começar da base, uma vez que tudo o que se tem feito, da maneira tradicional, não leva a lugar nenhum, geram mais despesas que retorno e mantém apenas as condições vegetativas retroagentes e ineficazes.

A proposta a ser delineada está apoiada em premissas, como se passa a expor:

a. O turismo é, no contexto econômico mundial, uma das atividades que geram mais receita, talvez a segunda em volume, e se apresenta no início do milênio como esperança e perspectiva bem fundadas para os que o entendam bem e saibam encaminhar o seu planejamento e implementação;

b. Santos busca, desde há muito, um plano de ação nesse campo, ainda que a isso pareça ter vocação natural por suas condições de cidade marítima e de praias. Mas o que há é o aproveitamento predatório de vantagens políticas, econômicas e fiscais por pessoas ou grupos. Há uma tentativa constante de se apossar de áreas públicas, de se obter isenções e recursos a fundo perdido, sempre que possível. Há muito voluntarismo, mas pouco de prático em escala compreensiva e/ou sistemática. Há muitas idéias mal alinhavadas e mal alicerçadas. Não se verifica a viabilidade econômico-financeira do que se propõe, não se indicam as fontes de recursos, não se quantifica, não se pesquisa, não se respeitam a história, a cultura e o meio ambiente.

c. A atividade turística, embora pareça ter, às vezes, uma amplitude muito larga, necessita estabelecer bem claramente seus objetivos e definir seu foco, para não se dispersar com muitos efeitos pirotécnicos, pouca efetividade e desperdício dos recursos econômicos escassos;

d. Os maiores pólos de atração turística não apresentam uma grande variação em sua linha mestra. Orientam-se para um “tema” principal, uma vez definido seu público-cliente, que passa a ser seu público-alvo. É certo que há exceções, mas, em linhas gerais, alcançam melhor seus objetivos e resultados econômicos aqueles que sabem bem claramente o que têm e potencializam ao máximo o seu aproveitamento. Assim, Florença vende história, cultura e valores estéticos (em 2001, essa cidade acolheu cerca de 8 milhões de turistas e faturou US 4 bilhões, o que corresponde a tudo o que o Brasil arrecadou com o turismo internacional no mesmo período. Nossa região recebe por ano, abstraída a qualidade econômica, mais do que essa quantidade de visitantes). Orlando, na Flórida, vende parques temáticos, diversões mecânicas e paisagens artificiais, Cancun as praias e alguma arqueologia, Lourdes vende fé e religiosidade. Cada uma dessas localidades atinge um público bem definido, embora às vezes interpenetrado. Os que acorrem a esses lugares sabem exatamente o que vão encontrar e que satisfará suas expectativas. É interessante notar que a nossa região, embora poucos se dêem conta e não haja nenhuma ação no sentido de aproveitar essa vantagem, possui atrações de interesse turístico e de visitação mais variadas que a maioria dos lugares citados;

e. Os fluxos turísticos podem ser identificados ou caracterizados por fatores como nacionalidade, faixa etária, interesses, o que permite estabelecer e implementar estratégias de atração mais eficiente da clientela;

f. O grupo de turistas que interessa mais a qualquer receptor consciente e competente é o composto pelas pessoas de maior idade, aposentadas ou não, do próprio país ou de outras origens. Isso se deve a que essas pessoas ou famílias estão já definidas do ponto de vista econômico, e requerem um tipo de atendimento que pode ser mais bem estruturado e remunerado. Outra das vantagens que apresenta o turismo feito pelas pessoas de mais idade é que pode ser planificado de maneira mais linear para todas as estações do ano, já que essas pessoas, em sua maioria, não têm mais preocupações com períodos escolares ou sazonalidade, diminuindo a ocorrência de variações importantes de demanda. Também, pelos hábitos e comportamento, determinam um melhor retorno econômico aos lugares que freqüentam, com vista ao custo-benefício;

g. Santos, por sua topografia, pela beleza natural, pela qualidade de vida que, apesar de alguns retrocessos, ainda apresenta um nível superior comparativamente à quase totalidade das cidades do Brasil, principalmente face às de grande porte, pelo modo de ser e viver de seus nativos, pelo conjunto de serviços públicos e privados que possui, por estar dentro do eixo político, cultural e econômico de maior importância do país, é candidata natural a ser o grande pólo de atração desses turistas nesta parte do hemisfério. E surgiria como a grande beneficiária dos resultados de uma política bem planificada e bem executada nesse sentido.

(Todos, ou quase todos, os requerimentos para que se passe da idéia à ação estão presentes em nossa cidade, sendo razoável supor que fontes de recursos federais, estaduais e municipais – e mesmo internacionais pública ou privadas, como de ONG’s voltadas para o estudo e o incremento das condições de vida desses segmentos etários, ou o fornecido por agências de fomento de outros países que buscam acolhimento para os seus idosos como, por ex., o Japão – podem ser mobilizados mediante atitudes positivas. Não há necessidade de investimentos vultosos em infra-estrutura e nem na instalação de equipamentos como parques temáticos, balneários, hotéis, fatores estes que virão em decorrência do crescimento lógico da demanda e do conseqüente interesse de investir do operador privado. O que se necessita é de imaginação, criatividade, capacidade de trabalho, de articulação de agentes e fatores, de aglutinação e de vontade política.)

Por todos esses motivos e muitos outros que se poderá aduzir, se sugere a planificação e a implementação de um conjunto de ações, no sentido de transformar a cidade nesse grande pólo de turismo receptivo da maturidade no país e no continente. Para isso, são indicadas duas medidas:

1. Criação, em caráter de urgência, de uma agência autônoma e independente (de conformidade com o que propõem os apontamentos anexados) que executará essa função, organizando, operando e articulando os fatores e o acoplamento com outros agentes públicos de todos os âmbitos e da iniciativa privada e outros atores interessados e/ou beneficiários da atividade turística. Apresentará um plano de ação para médio e longo cursos, com visão ampla e integrada à filosofia da administração, e operará o processo pelo tempo necessário à sua consolidação. Deverá ser, no momento oportuno, incorporada a ou absorvida pela secretaria municipal de turismo (depois desta ser devidamente modificada e reestruturada como se propõe a seguir).

2. Reestruturação e reorganização da secretaria municipal de turismo, de modo a transformá-la em um órgão eminentemente de planejamento, de normalização e proponente de legislação específica, abandonando a maioria de suas funções executivas. Manterá, e apenas pelo tempo necessário, a realização dos eventos mais tradicionais, de baixo interesse da iniciativa privada que, posteriormente, serão encaminhados a organizações da comunidade diretamente interessadas neles. Esta nova secretaria identificará oportunidades, avaliará projetos, investigará e identificará fontes de recursos e linhas de financiamento. Porá esse trabalho à disposição dos interessados da área privada, assessorará e, eventualmente, avalizará parcialmente – tomadas todas as medidas legais e de segurança – esses financiamentos obtidos pelos interessados, dentro das condições a serem estabelecidas. Deverá ajustar-se a uma dotação orçamentária mais enxuta e mais adequada a suas novas funções, procurando obter recursos direcionados para as atividades que promoverá, liberando recursos municipais para os setores prioritários e mais carentes.

Atuando deste modo, a secretaria fomentará e estimulará o surgimento de novos agentes e empresários de turismo receptivo, criando as condições para que surjam novas e imaginativas formas de atração turística e se ampliem os investimentos no setor.

De outra parte, a secretaria deverá interagir com os demais órgãos da administração municipal, para a criação de um espírito comunitário de participação nessa transformação mental e física da cidade e seus moradores em referência no turismo nacional, nos padrões de comportamento e de consumo, como laboratório de lançamento de produtos e serviços e de cultura. Poderá lançar um grande concurso de âmbito nacional para a contratação de empresa ou empresas associadas para a construção programática e material de uma imagem da cidade que abrangerá até mesmo a sinalização das vias públicas, a padronização da pintura de seus meios de transporte, ficando a cargo dessas mesmas empresas o financiamento do projeto e sua realização, sendo permitida a comercialização da imagem como meio de ressarcimento, observadas as disposições legais que controlem e protejam o patrimônio ambiental, físico, histórico e cultural da cidade.

3. A atual dotação orçamentária da Setur será adequada à nova situação, feitas as alocações necessárias. Far-se-á o aproveitamento máximo possível do pessoal existente, feitos os remanejamentos apropriados. Ter-se-á em vista a aceitação e a adaptação à nova filosofia da administração e o re-treinamento, quando necessário.

Postado em 02 de fevereiro, de 2009

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