Discursos Identitários em Torno da Música Popular Brasileira
Este trabalho tem sua origem em nossa dissertação de mestrado, quando estudamos como a questão identitária é articulada nos discursos sobre a música brasileira exportada a partir dos anos 2000, sendo, portanto, um estudo que tem como base os processos de mundialização. Para o presente trabalho, trazemos alguns dos pontos tratados nessa pesquisa.
Tratamos de três possibilidades identitárias, que, entendemos, são as mais articuladas na música brasileira exportada. São elas as identidades: nacional, mundial e restritas. Podemos para cada uma relacionar uma variante cultural. A identidade nacional vai se relacionar imediatamente com o nacional-popular, que, segundo Marco Napoplitano, se refere, no Brasil, àqueles tipos musicais formados entre os anos de 1920 e 1970 (Napolitano, 2007: 75) e que se ligam a uma idéia consagrada de brasilidade. A identidade mundial vai se traduzir no campo cultural naquilo que Renato Ortiz chamou de internacional-popular (Ortiz, 2001: 182-206). Com este termo pensamos nas manifestações que perdem sua territorialidade, que não se ligam diretamente a uma identidade em fronteiras, que perdem sua marca de origem e que geram sentido social a pessoas em todo mundo. Ao se reterritorializarem na vida cotidiana, porém, são assumidas de maneiras diferentes em cada lugar. Por fim, as identidades restritas se tornam, no campo cultural, naquilo que vamos chamar, coerentemente aos outros dois termos já consagrados, de cultura popular-restrita. Por este entendemos as manifestações culturais cujos discursos que o circundam se referem a uma imagem de territorialidade fixa, a um grupo determinado formado em torno de questões étnicas (com o qual vamos nos preocupar), mas também poderiam ser etárias, de gênero, de classes sociais, etc. [Quando olhamos os escritos sobre a música brasileira no exterior, no espaço da modernidade-mundo, notamos o acerto de nossa escolha analítica. Um exemplo é o livro Music in Brazil: Experiencing Music, Expressing Culture, do norte-americano John P. Murphy, que se propõe como um panorama da música brasileira atual. Este autor, pois, dividiu seu trabalho em três capítulos, cujos títulos são suficientes para corroborar nosso argumento: Music and National Identity (Música e Identidade Nacional), Music and Regional Identity (Música e Identidade Regional) e Musical Cosmopolitanism (Cosmopolitismo Musical) (Murphy, 2006).
Antes de entrarmos na análise, é importante notar que estas múltiplas possibilidades de discursos identitários surgem no momento em que a identidade nacional perde sua condição privilegiada na geração de sentidos sociais, condição esta que vigorou entre o fim do século XVIII e início do XX. A globalização da economia e da tecnologia, enviesada pelo sistema capitalista sempre em expansão, não mais se atém às fronteiras do Estado-nação. Busca rompê-las, sendo tal movimento responsável tanto pela entrada em jogo de uma identidade mundial (e sua variante cultural internacional-popular), quanto pelo ressurgimento (ressignificado ou criado nos termos de um simulacro) de identidades restritas que, no momento da fundação do Estado-nação, foram oprimidas. Enfim, se de um lado a globalização enfraquece a identidade nacional – por ser restrita demais – e espalha uma cultura mundializada, de outro permite que as culturas de identidades infra ou pré-nacionais possam gerar conformações simbólicas legitimadas. O importante, contudo, é entender como estas culturas ligadas às identidades se articulam. A música brasileira exportada é um campo privilegiado para tal compreensão.
Pensemos de imediato nos discursos do Ministério da Cultura brasileiro proferidos em razão de seu programa Copa da Cultura, ocorrido em 2006, que visou, em parceria com a instituição alemã Haus der Kulturen der Welt, a aproveitar a Copa do Mundo de futebol da Alemanha para divulgar a cultura brasileira naquele país a seus nativos e ao sem-número de turistas de outros países que fatalmente passariam por lá. Propunha-se:
"Um conceito aberto de cultura: No âmbito internacional, o Brasil há muito se tornou uma marca de enorme valor positivo. (...). Samba e futebol são os clichês da cultura brasileira. Samba e futebol são também formas através das quais a identidade da cultura brasileira e sua força integradora se mostram da maneira mais espetacular. Na realidade, porém, o Brasil é um continente de enorme diversidade cultural, com influências indígenas, africanas, européias, do oeste asiático e norte-americanas que não só se misturam, mas que também coexistem: a arte experimental contemporânea vive um momento de ruptura explosiva nos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que as formas rituais da tradição continuam existindo naturalmente, como parte da sociedade moderna". (Paschoal, Odenthal, 2006). (texto assinado conjuntamente pelos representantes brasileiro e alemão do programa)
Importa aqui notarmos que samba e futebol são assumidos como clichês fundamentais para a criação da identidade cultural brasileira. Descartando o futebol, que não é nosso interesse, o samba então – elemento da cultura nacional-popular – é assumido, ainda em 2006, como elemento fundador da identidade brasileira. Contudo, este elemento não mais se sustenta sozinho. O Brasil deve ser visto como “um continente de enorme diversidade cultural”, justificada por diversas influências de povos.
Notemos que não são mais apenas os índios, os negros e os europeus que formam nossa cultura – como víamos em discussões de intelectuais como Gilberto Freyre, que buscavam valorizar nossa mistura étnica na formação de um “povo” – mas os oeste-asiáticos e os norte-americanos são assumidos em nossa “diversidade cultural”. Novamente trazendo para nossos termos, a cultura popular-restrita (representada pela influência indígena) e a cultura internacional-popular (ligada discursivamente aos europeus e norte-americanos) aparecem em nossa conformação cultural. Por fim, também notemos que as culturas não apenas se misturam, mas coexistem. Esta noção de coexistência, que também está no fato propagado de que modernidade e tradição se encontram lado a lado no Brasil, é que ditará o mote do tratamento das identidades quando se relacionarem ao todo do Brasil: não é a síntese que tanto importa, mas sim a enumeração. Não mais somos uma cultura, mas sim todas as culturas.
Isto se nota pelo o que dizia na mesma oportunidade o então ministro Gilberto Gil. Ao ser perguntado por um jornal alemão sobre o que significa ser brasileiro, afirma que “ser brasileiro não significa ser algo. Significa ser muitas coisas. Em primeiro lugar, o que se tem de fazer, para se tornar brasileiro, é reconhecer a diferença como valor” (Frankfuter Allgemeine Zeitung, 2006: 31). Tratando dos clichês, Gil segue na mesma linha. “Eu não tenho nada contra clichês. Temos samba, praia e carnaval. Mas o que nós queremos mostrar também é a diversidade [Vielfalt] da cultura” (Handelblat, 2006: 6). Desta maneira, quando se pergunta, afinal, quais são as principais tendências no Brasil em termos de música, a resposta de Gil só pode ser extensa:
“A cena do Espírito Santo, por exemplo, é caracterizada pela fusão do congo com formas religiosas de expressão e celebração dos negros, dos índios e dos europeus, assim como o rock, o pop, o reggae e a música eletrônica. É o sincretismo musical que une a casaca com a guitarra, e o tamborim com o laptop, assim expressando ao mesmo tempo tradição e modernização. Eu poderia também falar do hiphop de São Paulo, do funk carioca do Rio de Janeiro, das canções populares do Pará, do reggae do Maranhão, da nova música de Minas Gerais, dos sons do Manguebeat de Pernambuco, da bossa eletrônica. Há muitos grupos de várias idades e de todas as partes do país fazendo música e ao mesmo tempo mantendo a tradição, incorporando novas inspirações, substituindo formatos e invocando associações inconcebíveis. Você tem de ouvir para entender” (Popkomm – English Issue, 20 – 22 /09/2006: p. 6).
A impressão que se tem é que esta resposta poderia se estender indefinidamente. Mas o que gostaríamos de retirar deste discurso é a idéia do sincretismo e a visão enumerativa. Gil aponta o sincretismo como a marca da cultura brasileira. Contudo, este sincretismo não resulta em uma síntese, em um termo novo, mas na necessidade de enumeração. Quando o samba se forma, por exemplo, ele se torna uma categoria musical apagando de seus discursos os estilos musicais que lhe deram origem, como o lundu, a marchinha, o maxixe, etc. O samba se torna uma categoria única. Já na atualidade, a mistura em música exige o discurso extensivo, hifenizado, que expresse a maior parte dos elementos que geram uma manifestação cultural. Isso se dá, justamente, pela impossibilidade de se ter uma identidade monopolizadora de sentido.
Com isso, o movimento que busca ampliar a significação identitária se volta ao mesmo tempo para desvalorizar a cultura nacional-popular e imbuir de força simbólica as culturas internacional-popular e popular-restrita. Isso se nota quando o músico e produtor mato-grossense Leandro Carvalho afirma que devemos “nos erguer dentre os demais como um grande país exportador de música e cultura, vencendo de uma vez por todas os estereótipos limitantes que nos aprisionam como o país do samba e do futebol” (Carvalho, 2006: 73); também quando um conceituado crítico de música brasileiro afirma em celebração que “O samba, nossa legítima matéria-prima, agora divide espaço com o rock, o funk e o eletrônico para gringo ver – e isso é muito bom” (Sanches, 2007: 58, 59).
Propomos olhar como as identidades se articulam em suas vertentes culturais a partir de um corpo analítico específico. Tomemos os projetos regionais de exportação de música, entre os quais nos interessamos pelos seguintes: 1) Music From Pernambuco (MFP 1 e 2) 1).* Região: Pernambuco; língua do encarte: inglês; 2) Music From Northeast (MFN). Região: Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba, Sergipe e Alagoas; língua do encarte: inglês; 3) Ceará Original Soundtrack (COS). Região: Ceará; língua do encarte: inglês/português; 4) Music from the Capital of Brasil (MFCB): Região: Distrito Federal; língua: inglês/português.
Não temos espaço aqui para discutir cada projeto. Contudo, tomados em si, é relevante notar como tratam suas produções em relação à identidade. O projeto de Brasília basicamente se volta à descrição do Brasil. Brasília seria o “centro geográfico” do Brasil e “a síntese da diversidade cultural brasileira” (MFCB). Já o projeto do Ceará valoriza o estado como o local de origem de “um grande número de talentos que contribuem diretamente para a história da música brasileira, uma das mais brilhantes do mundo”. E, com isso, “traçando uma linha entre as raízes e as novas raízes e as novas faces da música”; o projeto reúne os “destaques da produção contemporânea deste ensolarado estado brasileiro, que possui uma cultura rica e diversificada (...)” (COS). Já os projetos de Pernambuco vêem na cultura nacional-popular uma restrição à promoção de sua música. Assim, este projeto se inspira “no fato de que a maioria dos agentes, bookers e promotores [estrangeiros] de música nunca visitaram Pernambuco e seu conhecimento sobre o Brasil é restrito ao Rio de Janeiro e Salvador” (MFP).
Há diferentes estratégias entre os projetos no lidar com a identidade. Se no projeto de Brasília não há valorização de qualquer aspecto restrito, mas sim de uma coincidência com o Brasil, o projeto pernambucano dispensa a cultura nacional-popular e a vê, na verdade, como um empecilho de sua entrada no mercado mundial. No meio do caminho, temos o projeto cearense que busca um empréstimo de legitimidade da identidade nacional para afirmar sua cultura popular-restrita. Assim, podemos notar uma escala de forças simbólicas das identidades aqui articuladas na inserção global de suas culturas. Se a identidade pernambucana é forte o suficiente para passar por cima da identidade nacional, as identidades cearense e calanga, ao contrário, precisam desta última para atuarem no mercado mundial de música. Em outras palavras, as identidades adquirem forças dispersas que são articuladas estrategicamente como valores. Este é o centro de nossa argumentação e a ele voltaremos.
Vejamos, agora, os discursos de promoção dos artistas destes projetos. Vamos, neste momento, escolher os projetos de Pernambuco (MFP e MFP2), do nordeste (MFN) e do Ceará (COS), pois em seus encartes há textos sobre cada artista presente. Notemos os discursos em referência à marcação de origem (espacial e temporal), aos elementos mágicos, religiosos ou tradicionais e à descrição de atividades laborais. Lembramos que nos encartes, após os descritivos de cada artista ou grupo, há o contato para shows e a notícia se o disco está disponível para ser licenciado no exterior. Portanto, todos os artistas ou grupos devem ser vistos como atores que buscam inserção no mercado internacional de música. De modo metodológico, separamos dois grupos de textos.
O texto sobre o Maracatu Nação Estrela Brilhante fala de sua data de fundação, em 1910, “por antigos escravos”, e do local em que estão localizados, “Alto José do Pinho, uma comunidade conhecida por sua efervescência cultural”. Ainda, fala-se de seu apego às “tradições dos ritos africanos com todas as suas divindades”. Por fim, aponta que “seus instrumentos musicais são ainda feitos como eram usados no período da escravidão” (MFP). Já os Tambores da Oxum é uma banda “que canta o mágico de uma cultura antiga que foi capaz de desafiar o tempo” (MFP). O Reisado de Carnaíbas é descrito como “um grupo de cultura popular tradicional que vive na vila da Carnaíbas, que é situada no interior, perto da cidade de Arcoverde, Pernambuco. [A cultura] da vila de Carnaíbas (...) é dinamicamente ligada às atividades da comunidade rural” (MFP2). Por fim, Dona Maria “de todas as vozes que passam pela paisagem sonora do Cariri, é o hino das margens dos córregos das lavadeiras e as mulheres puramente devotadas”. Ela toca rabeca, que é “um tipo de viola rústica ancestral” (COS).
De lado discursivamente oposto do grupo de textos acima, temos os seguintes. Sobre o DJ Dolores & Aparelhagem diz-se que este artista “tem feito remixes para grandes nomes da música brasileira”, sendo que seu novo projeto é “o mais avançado [the latest] da música eletrônica brasileira” (MFP). Já Lula Queiroga, lançou em 2004 seu último disco, “mostrando o mais avançado [the latest] da sonoridade pop” (MFP2). O trabalho de Karine Alexandrino é “o mais contemporâneo produzido pela cantora brasileira”, com “vários elementos do mundo da música pop soando; do pop francês dos anos 60, indo pelo movimento tropicalista brasileiro, procurando o romantismo do brega do nordeste do Brasil aos Westerns italianos. Karine é a prova viva de que é possível misturar referências abrangendo do Punk ao Jazz com sofisticação” (MFN). Por fim, Montage “é uma banda revolucionária que adiciona um novo sabor à cena eletrônica brasileira” (COS).
Propomos ler estes discursos da seguinte maneira. Enquanto no primeiro grupo vemos as origens espaciais bem marcadas, as origens temporais em registros remotos, os elementos mágicos, religiosos presentes e as atividades laborais fora do campo musical destacadas, no segundo grupo temos o oposto. Os artistas ou grupos são apresentados como multi-localizados ou deslocalizados, seus últimos trabalhos datam em tempo recente, os usos tecnológicos em suas músicas são valorizados e suas atividades profissionais são ligadas somente à música. A conseqüência: para o primeiro grupo – ligado evidentemente à identidade restrita – o aspecto identitário é fixado; para o segundo grupo – ligado prioritariamente à identidade mundial, o aspecto identitário é uma opção.
A partir dos discursos aqui apresentados, está claro que estamos em um cenário no qual a identidade nacional tem suas barreiras culturais forçadas para expansão por uma cultura internacional-popular e por culturas popular-restritas. Ainda, as identidades são mobilizadas conforme a valor simbólico que possuem, ou seja, a força em gerar interesses no mercado global de música. Por fim, que os atores neste cenário têm suas manifestações culturais discursadas a partir de registros identitários, sendo que alguns são destinados a se fixarem em registros específicos e a outros é dada a mobilidade entre diferentes registros. É a partir disso que nos dedicamos às problematizações.
Marshall Berman aponta que:
“Para que as pessoas sobrevivam na sociedade moderna, qualquer que seja sua classe, suas personalidades necessitam assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade. Homens e mulheres modernos devem aprender a aspirar à mudança: não apenas estar aptos à mudança em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente em busca das mudanças, procurá-las de maneira ativa, levando-as adiante. Precisam aprender [...] a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovação, a olhar sempre na direção de futuros desenvolvimentos em suas condições de vida e em suas relações com outros seres humanos” (Ridenti, 2000: 304).
Zygmunt Bauman vai no mesmo sentido ao afirmar que “Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, ‘estar fixo’ – ser ‘identificado’ de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman, 2005: 35).
Se concordamos com estes dois autores (e com diversos outros que não pudemos aqui citar), a mobilidade se torna uma imposição da boa vida moderna. Isso se nota também pelo fato de que a música de todos os artistas ou grupos citados se encontre em um espaço móvel, desatrelado de suas raízes. Contudo, a própria mobilidade gera uma fixidez. O Maracatu Nação Estrela Brilhante passa a ser aquilo que está registrado; o Reisado Encanto das Carnaíbas passa todo ele a ser aquela canção do disco. Assim, a mobilidade gerada pelo fato do bem cultural poder circular para além das fronteiras comunitárias leva a uma fixação. E esta fixação se dá também no nível simbólico, quando o discurso em torno do bem cultural é apropriado pela indústria cultural. Esta, na verdade, inverte a ordem das coisas. As culturas tradicionais, que têm essencialmente uma manifestação cultural móvel, pois se renova a cada acontecimento (por uma chuva, por um casamento, por um funeral, etc), são fixadas em suportes desta indústria (um disco, mas poderia ser um MP3). Com isso, a própria identidade é fixada e os atores que nela se movimentavam, agora devem a ela se atrelar. E esta fixação é último movimento que o mercado global de música permite aos criadores de cultura popular-restrita. A partir deste momento, eles serão suas próprias identidades, usadas como sua caracterização no mercado da música. Já aos outros, aqueles a que são permitidos os usos de outras identidades, tal fixação (o registro fonográfico) é o primeiro passo para uma mobilidade intensa, na qual a adequação identitária ocorrerá de múltiplas maneiras. Há, portanto, condições de mobilidade que, propomos, são dadas por dois fatores: o valor que a identidade imediata possui na modernidade-mundo e o acúmulo de capitais (em termos de Bourdieu) que possuem estes atores para se tornarem fixos ou móveis. Tratemos disso.
Quando Manthia Diawara diz que “os povos [na África] não entendem (...) a necessidade de se preservar as ‘culturas autênticas africanas’, (...) [uma] obsessão dos especialistas europeus” (Diawara, 2004: 107), na verdade está apontando para uma realidade que se vê às claras a partir da relação da indústria cultural com as identidades em suas vertentes culturais. É justamente aqui que se forma o ciclo seletivo de adequação às identidades possíveis na globalização. As culturas ligadas às identidades adquirem valor e a necessidade da indústria cultural em variar um produto é que vai estipular este valor. Neste sentido, manter as “culturas autênticas” em funcionamento é, na verdade, é uma necessidade em prover para o mercado variações simbólicas, seguindo a regra de uma “diferenciação gerenciada”. Mantendo-se uma base comum (esta ligada à cultura internacional-popular, pois aquela comum ao mundo todo, ou melhor, ao mercado consumidor global) as “culturas autênticas”, aquelas popular-restritas, assumem a função de apresentarem as novidades. Afinal, na modernidade-mundo, é preciso que todo produto contenha variações que permitam que as estratégias globais se mantenham em operação, renovando-se constantemente. Do contrário, pela lógica do consumo cada vez mais individualizado, a própria repetição condenaria ao fim qualquer expressão cultural que se expandisse globalmente, como a internacional-popular.
Está aí a necessidade de articulação entre as culturas nacional-popular, popular-restrita e internacional-popular. Enquanto a última não se sustenta sem a variação provida pelas outras, as outras não conseguem isoladamente atuarem em um mercado global. Isso porque, as identidades popular-restrita e nacional (as menos valorizadas, em geral de países não ocidentais) só conseguem espaço no mercado global ao se assumirem como a variação de símbolos comuns reconhecidos, aqueles gerados pela cultura internacional-popular. Neste sentido, as identidades que são mobilizadas, o são conforme os valores que adquirem neste mercado, sendo que o maior valor significa sempre uma maior condição de mobilidade.
São, então, necessárias estratégias de valorização de identidade, que ocorrem pelo o que chamamos de empréstimo de legitimidade. É o caso de se trazer para um corpo simbólico de uma identidade outro corpo que seja mais legitimado no mercado. Isso ocorre, por exemplo, quando propagandas de sandálias ou bebidas marcadamente brasileiras mostram alemães ou americanos como seus consumidores. Neste caso, a identidade brasileira recebe de empréstimo uma legitimidade a partir de grupos de pessoas que carregam em si valores identitários superiores no mercado global de símbolos. Contudo, tal empréstimo também depende do valor prévio que uma identidade já detém neste mercado, sendo um processo contínuo de ganhos e perdas.
Os atores – no nosso caso os músicos, mas também as empresas que trabalham com música, como gravadoras, empresas de venda de shows – circulam em conformidade com as identidades a que se atrelam. Aqueles atores que se formam em torno de um discurso identitário, cuja base simbólica é territorializada, datada, ligada a elementos não modernos – que são os especialmente ligados às manifestações culturais popular-restritas –, deverão neste se fixar. Já aqueles que, do contrário, se formam em discursos identitários de base simbólica desterritorializada e, portanto, ligados aos processos racionais e tecnológicos, baseados em elementos da cultura internacional-popular, terão sua área de atuação aberta às possibilidades de escolha. Isto porque se a tradição é discursada a partir de elementos rígidos – data, local de nascimento, instrumentos musicais, raízes ancestrais, etc – a modernidade é discursada a partir de elementos flexíveis, tendo a tecnologia como base privilegiada. Contudo, o mercado de música – e o cultural em geral – é feito ele mesmo desta flexibilidade. Exige a eterna adaptação de elementos em prol de uma visão de inovação constante, condicionada, é fato, a uma padronização (seria melhor pensar em diferenciação gerenciada). Oras, se os elementos discursados a partir da identidade restrita são justamente o oposto à inovação, os seus descartes são plenos, e aqueles criadores que a estes discursos se atrelam serão simultaneamente descartados. Mantém-se deles apenas a imagem que provém de suas culturas, de suas identidades, que poderão, então, ser assumidas pelos atores capazes de múltiplas identificações, mais adaptados aos ditames do mercado global. São estes os que chamamos de atores móveis.
Conforme o acúmulo de capital do criador cultural ele deverá se subsumir com mais ou menos fixidez a uma identidade em busca de se posicionar no mercado internacional de música. E, ainda, dependendo também deste capital, o criador poderá se relacionar a uma identidade mais fixa, ou seja, que preza pela perenidade e territorialidade e, portanto, menos valorizada, ou a uma mais valorizada por ser flexível, tendo como essência a própria mudança e a desterritorializacão. Ou seja, podemos pensar em dois tipos extremos de criadores. Um que, por falta de acúmulo de capital, necessita se fixar em uma identidade, sendo que sua imagem no mundo da música se torna esta própria identidade, impedindo-o de trocá-la. Ainda, por falta de capital este criador só pode buscar a identidade mais imediata, mais próxima a si e que, portanto, é territorializada. No outro extremo, temos o criador cujo capital lhe permite não se fixar a qualquer identidade, pois não o necessita para se inserir no mercado cultural, mas que, quando ou se o fizer, será de forma controlada, estratégica e temporária, enquanto tiver interesse para tanto. Assim, se do lado do primeiro criador temos todos os elementos da fixidez (a identidade é fixa e sua relação para com ela também o é), para o segundo temos todos os elementos da mobilidade. Em um tempo no qual a mobilidade se impõe como imperativo de sobrevivência é evidente que para o primeiro criador a vida no mercado cultural está fadada a não passar de um suspiro. Repetimos: apenas sua imagem se manterá viva, mas de si alienada, em termos marxistas, e apta a ser apropriada por outros criadores que poderão dela se aproveitar, mas nela não se fixarem.
Estamos, portanto, diante de um cenário de interesses homogêneos e oportunidades heterogêneas. O interesse de todos estes criadores é a inserção no mercado cultural, pois não há mais espaço fora dele, especialmente a partir dos desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos no mundo da música. A própria sobrevivência de um valor cultural passa a ser visto como possível apenas pelo mercado. Contudo, as possibilidades para a atuação são distribuídas desigualmente, dependendo da capacidade do criador em se relacionar de forma mais ou menos flexível com identidades mais ou menos valorizadas. Para tanto, diversos capitais estão em jogo. Alguns que se adquirem com o desenvolvimento da vida de cada um e outros que são adquiríveis por limites impostos à condição inerente a cada pessoa. Quanto ao primeiro grupo, no caso de música, poderíamos apontar: 1) Capital econômico: quanto mais dinheiro um criador tiver mais liberdade ele terá para atuar no mundo musical, podendo financiar seus discos, da maneira que quiser, fazer turnês, pelos países que quiser; 2) Capital cultural: se a cultura internacional-popular, por sua desterritorialização, é a que mais se beneficia em valor na mundialização, especialmente – e não apesar – a partir dos desenvolvimentos das novas mídias, o conhecimento de algumas técnicas são fundamentais. Entre elas, destacam-se os conhecimentos sobre o mundo digital e o domínio da língua da mundialização, o inglês. 3) Capital social: quanto mais produtores, gerentes de gravadoras, agentes de artistas, enfim, pessoas influentes no mundo da música, que trabalhem no mercado global, fizerem parte de seu relacionamento, mais facilitada estará a inserção do criador neste mercado.
Quanto aos capitais que não podem ser adquiridos se encontram. 1) Questões étnicas: nascer imediatamente relacionado a uma identidade privilegiada é uma vantagem neste mercado, sendo que esta apenas será acrescida em valor quando mais identidades fizerem parte da carreira deste criador. Do contrário, o que nasce relacionado a uma identidade desprivilegiada deverá empreender todos os seus esforços para amenizar suas marcas, como mudar o seu nome de origem para um em inglês. 2) Questões raciais: a cultura internacional-popular é dominada por criadores europeus e norte-americanos, como se percebe facilmente. Assim, estamos falando, basicamente, de povos brancos. Os povos negros também podem ser incluídos por sua forte presença nos Estados Unidos, mas fazemos o adendo de que não concordamos que em música não há racismo. A indústria cultural estabelecida inclui os negros no processo de criação e produção, mas os condiciona a espaços específicos, geralmente relacionados ao que consideram os espaços para a música negra. Assim, ainda hoje, o negro não possui, na mesma proporção dos brancos, condições de circulação identitária no mercado mundial de música. Agora, a alguns outros povos, o estigma é maior, o que leva a uma grande dificuldade de inserção neste mercado por suas identidades**. É por isso, por exemplo, que vemos tantos cantores de rock japoneses que mudam a cor do cabelo, buscam diminuir a base de lápis a curvatura dos olhos, etc, buscando parecerem mais ocidentais.
Em conclusão, podemos enfim pensar que a articulação entre as identidades mundial, nacional e restrita não se dá sem hierarquias. A identidade mundial, no mercado global, funciona como um padrão ao qual as outras identidades devem acertar seus relógios e funcionar como elementos de uma diferenciação gerenciada. Neste contexto, identidades são fixadas e pessoas a elas condicionadas, tornando, elas mesmas, meramente trabalhadores de segunda linha, cuja função é tornar o bem cultural desejado pela indústria em algo mais valorizado. A tecnologia, que então aparece ideologicamente como o espaço do livre acesso e da criatividade, na verdade é um modo de controle que garante a ordem das coisas e a concentração de poder em torno de poucos e que a poucos pode beneficiar. São esses poucos aqueles capazes de lidarem com este mercado, aqueles a que chamamos de atores móveis. Atores estes que não se sustentam sozinhos no mundo, mas que numa relação necessária, vêem sob si aqueles que se fixam em torno de suas identidades.
Bibliografia
Livros:
Bauman, Zygmunt. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Carvalho, Leandro. (2006). “O Rodopio do Centro”, in: INSTITUTO ITAÚ CULTURAL, Rumos_Brasil: Pensamentos & Reflexões. São Paulo.
Diawara, Manthia. (2004). “Towards a Regional Imaginary in Africa”, in: JAMESON, Fredric, MIYOSHI, Masao (orgs). The Cultures of Globalization. Durham, London: Duke University Press.
Goffman, Erving. (1980). Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Murphy, John P. (2006). Music in Brazil: Experiencing Music, Expressing Culture. New York, Oxford: Oxford University Press.
Napolitano, Marco. (2007). A Síncope das Idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
Ortiz, Renato. (2001). A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense.
Ridenti, Marcelo. (2000). Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record.
Jornais e Revistas:
Sanches, Pedro Alexandre. 2007. “Made in Brazil”. Rolling Stone 5: 58-59.
“So schön dass es weh tut“ Frankfurter Allgemeine Zeitung 14/05/2006: 31.
„Von wegen bloss Samba“. Handelblat 13.14.15/01/2006: 6.
Popkomm – English Issue, 20 – 22 /09/2006: 6.
* Todas as informações e os textos citados foram retirados dos CDs promocionais que carregam o mesmo nome dos projetos, e que possuem como encarte um material descritivo do projeto. Isso vale para todos os projetos citados. Todos materiais analisados foram criados a partir de 2000. Ainda, é importante o fato de que todos sejam apoiados por órgãos governamentais (secretarias de cultura ou Sebrae regional)
** Pensamos aqui com Erving Goffmann em dois sentidos. Um, quando ele fala da possibilidade da correção de um estigma (p. 19). Outro quando diz que ao estigma, “a visibilidade é, obviamente, um fator crucial” (p. 58). (Goffman, 1980).